Grupo de História das Populações

Investigadores Projecto Espaços Urbanos

 

SCOTT, Ana Silvia Volpi - Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português (Séculos XVIII e XIX)

A reconstrução histórica da comunidade minhota de São Tiago de Ronfe entre os séculos XVIII e XIX, tinha como motores fundamentais o estudo dos diferentes comportamentos que particularizaram a sua população.

Intentámos encontrar estas diferenças no campo multifacetado da história da família, tendo como elemento basilar a reconstituição demográfica da comunidade, partindo de um núcleo de fontes muito específico, os registos paroquiais, que entretanto foi sendo sistematicamente enriquecido com informações cruzadas provenientes de fontes variadas, produzidas não só pela Igreja, mas pelo próprio Estado português.

Todo este conjunto de informações foram reunidas ao nível nominativo do indivíduo e permitiu que dentro do campo interdisciplinar da história da família fossem evidenciados alguns elementos, no que dizia respeito às suas formas de união, à fundação das suas famílias e às estratégias de reprodução social existentes no espaço territorial que delimitava a freguesia.

O aprofundamento da investigação a este nível só foi possível graças ao emprego de metodologias apropriadas provenientes da Demografia Histórica, da Antropologia Histórica, da História Social e da Sociologia. Ao mesmo tempo, foram fundamentais as incursões a outros campos do saber, como o Direito (civil e canónico) que nos deram as informações essenciais para a sustentação de algumas das afirmações que diziam respeito não só às normas do casamento como também a todo o intrincado e contraditório conjunto de leis que vigoraram sobre a herança, a propriedade da terra, e que forneciam os contornos "legais" do espaço mais amplo onde aquela população tinha que circular.

Embora a norma religiosa e a lei do estado fossem gerais, e tentassem impor um comportamento uniformizado para toda a população, encontrámos uma série de constrangimentos, de vária origem, que impossibilitaram o cumprimento integral daqueles postulados normativos por uma parcela significativa da comunidade.

Enquanto que as instituições dominantes procuravam "domesticar" a família e a vida familiar, fazendo com que elas transcorressem sob a égide das tradições consagradas a partir do Concílio de Trento, e cumprissem o seu papel de gerar bons cidadãos., através do matrimónio, como pretendiam os moralistas, as condições efectivas em que viviam algumas populações tornavam virtualmente impossível que todos alcançassem aqueles ideais. de vida familiar, baseados nos laços do sagrado matrimónio tal como era instituído nas diversas constituições sinodais que vigoraram no Arcebispado de Braga no período pós-tridentino.

As fontes utilizadas trouxeram à luz uma comunidade internamente em nada igualitária, que desenvolveu estratégias de reprodução biológica e social compatíveis com as diferenças que a caracterizavam.

A população estava dispersa por um território intensamente ocupado, com poucas ou nenhumas possibilidades de sustentar o ritmo de crescimento que lhe era característico. Se a terra era pouca, também parcos eram os recursos tradicionalmente empregados na sua exploração. A maioria dos indivíduos não tinha acesso a mais que um pequeno pedaço de terra no qual plantar o mínimo que garantiria a sua subsistência e a dos seus.

O recurso de que se valiam era complementar os reduzidos produtos que extraíam da exploração da minúscula horta, onde plantavam couves, milho e pouca coisa mais, através da fiação e tecelagem caseira do linho, e depois do algodão, o que lhes permitia que um equilíbrio, ainda que precário, fosse mantido.

Outros, por outro lado, compunham uma camada mais privilegiada da população, possuindo terra que chegasse para o sustento do agregado familiar, seguido daquela minoria que não só possuía o suficiente para si e para a família, como era passível ainda de empregar mão-de-obra complementar de fora, constituindo algumas da quintas mais importantes da freguesia de São Tiago de Ronfe.

Uma terra que não produzia o sustento de todos levava a uma inexorável procura de equilíbrio entre os dois pratos da balança. A população tinha que encontrar os meios de travar o seu excessivo crescimento.

As estratégias para atingir este objectivo fundamental estavam integradas ao princípio da restrição do acesso ao casamento daqueles indivíduos que permaneciam na comunidade e na constante evasão de contingentes populacionais excedentários.

Aqueles que optavam ou eram forçados a deixar a família e a casa paterna, tinham que encontrar um caminho próprio, amparados ou não por alguma compensação deixada pelos pais. Isto comumente significava abandonar a própria terra natal, tentando estabelecer-se em locais mais ou menos próximos, sendo que o destino final poderia ser uma das, freguesias ou vilas e cidades na própria região, ou mesmo optar pela longa e distante travessia para o outro lado do Atlântico, correndo atrás da miragem e do eldorado que representava o Brasil.

A comunidade sofria assim de um mal crónico, o permanente desequilíbrio entre os sexos. Sobravam, e muitas, as mulheres. Filhas de proprietários, filhas de jornaleiros, filhas de cabaneiros, filhas de artesãos, filhas legítimas, filhas ilegítimas, todas encontravam dificuldades (maiores ou menores) para encontrar um parceiro matrimonial. Muitas fatalmente seriam relegadas a uma vida celibatária, e como tal tiveram que encontrar o seu lugar na sociedade.

Neste contexto é que se percebe o papel que puderam assumir em determinadas condições. Na falta de homens que pudessem desempenhar os papéis tradicionalmente a eles reservados, elas tiveram uma via de inserção. Quando os seus irmãos, maridos, ou pais faleciam ou deixavam a freguesia, na falta de quem os substituísse nas suas funções, apareciam as mulheres para ocupar aquele espaço vago.

Esta situação é notada com mais ênfase na comunidade que estudámos quando o desequilíbrio entre os sexos era mais acentuado, especialmente desde os inícios do século XVIII até meados do século XIX. Ali a mulher encontrava espaço para chefiar o agregado doméstico, para assumir a gestão dos bens e da casa, e tornava-se portanto uma peça essencial à família. Mesmo celibatária ela constituía um elo de ligação vital entre as gerações sucessivas.

Mas, a maioria delas estaria disposta a abrir mão totalmente das suas possibilidades de estabelecer uma família? Limitar-se-íam a viver apenas em função daquele papel que não se adequava aos modelos familiares tradicionais fundados no casamento e na casa? Submeter-se-íam ao que estava por detrás da mundivivência do camponês minhoto?

Se o casamento tardio e restrito era a via encontrada para preservar o delicado equilíbrio entre população e os recursos, como superavam os entraves colocados às suas vidas, familiares e afectavas aqueles indivíduos que permaneciam na terra? Subordinar-se-iam a eles e aos papéis substitutos que se lhes ofereciam, na gestão do agregado familiar?

Certamente que não. Pudemos detectar toda uma série de mecanismos que foram encontrados para que aos, restantes indivíduos que compunham a comunidade, fosse possível o acesso a uma vida familiar, embora esta não estivesse circunscrita aos modelos impostos seja pela igreja, seja pelo Estado, seja pela tradição cultural minhota.

Uma parcela da população que vivia na freguesia de São Tiago de Ronfe teve que encontrar formas alternativas de união e reprodução. Elas passavam para além do celibato, pelo concubinato, por uniões não legitimadas pela igreja, pela geração de filhos naturais.

Neste contexto de transgressão e desvio às normas transcorreu a vida familiar de não pouco indivíduos, que sistematicamente resistiram a todas as tentativas, quer da Igreja, quer da comunidade, em cercear e destruir esta via de escape encontrada,

Esta vida familiar alternativa, que corria em paralelo à família tradicional e legítima, constituiu pois um espaço privilegiado da mulher. Ao longo do período em estudo tivemos oportunidade de testemunhar os quantitativos de fogos chefiados por mulheres, a quantidade de mulheres que recorrentemente deram à luz filhos naturais, que estabeleceram ligações ilícitas não só com indivíduos solteiros e viúvos, mas com homens casados, procurando de alguma forma superar a imposição de um celibato, que além do casamento, também lhes negaria a possibilidade de ter uma prole, ainda que bastarda.

Embora estas formas de relacionamento alternativo não fossem exclusivas das mulheres das camadas sociais menos privilegiadas, percebemos uma nítida afinidade entre a ilegitimidade, o concubinato e algumas parcelas mais pobres e sem terra da população.

Mas a própria evolução pela qual passou a comunidade, principalmente em termos económicas, parece que contribuiu para alteração de alguns comportamentos que remontavam seguramente aos séculos anteriores ao do início da nossa investigação.

A ilegitimidade como elemento chave para indicação dos comportamentos que se desviavam da norma religiosa e social, tendeu a perder a sua importância ao longo dos dois séculos que mediaram os anos setecentos e oitocentos.

Ao mesmo tempo que a população vai encontrando um equilíbrio mais estável entre os sexos, assiste-se não só à queda da ilegitimidade, como à sistemática perda de peso dos agregados chefiados por mulheres, e ainda uma tendência cada vez menor dos homens solteiros deixarem a comunidade. Na segunda metade do século XIX, a população não só tinha menos filhos ilegítimos, como se casava mais e ligeiramente mais cedo, como o celibato definitivo atingia os níveis mais baixos encontrados até então.

Os factores que parecem explicar estas mudanças estavam vinculados ao progressivo incremento das actividades de fiação e tecelagem que tradicionalmente ocupavam lugar de relevo na economia concelhia vimaranense.

A conjuntura internacional favorável ligada à manufactura do algodão veio a promover a substituição da secular actividade de fiação e tecelagem do linho. O momento de euforia que marcou a segunda metade do século XIX, foi perpetuado através da realização da Exposição Industrial em Guimarães no ano de 1884. Mais do que isso, os próprios resultados divulgados através dos inquéritos industriais realizados pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Industrial em 1881 e 1891, vieram a confirmar a influência que aquela concorrência de factores trouxe para o concelho de Guimarães,

Verificámos inclusive que, nas décadas finais o século XIX, houve um refluxo da emigração para o Brasil naquele concelho quando o país, como um todo, era profundamente marcado pelo aumento brutal das taxas de saída dos seus contingentes populacionais.

Entretanto, apesar destas mudanças ao nível económico, estas não foram suficientes para subtrair à família o papel e funções primordiais que desde há séculos desempenhava nas comunidades rurais minhotas. Numa sociedade em que os mais desvalidos contavam praticamente só com a família como meio de protecção e auxílio, a sua importância ia além daquelas mudanças conjunturais, tendo como pilares fundamentais valores que tinham raízes perdidas no tempo.

Por outro lado, foi possível notar como as diferentes formas familiares se modificaram ao longo do período, respondendo a estímulos favoráveis, tendo sempre como padrão referencial a família legítima.

Quando os constrangimentos demográficos, sociais e económicas agiam de maneira mais actuante, os arranjos familiares multifacetavam-se, coexistindo formas alternativas que atingiam um leque extremamente variado. Gradativamente, ao mesmo tempo que a comunidade parece caminhar para uma situação de equilíbrio (nos vários sectores) as formas alternativas de família que se afastavam dos modelos, apesar de continuarem a existir, perdem a sua importância, visto que mais indivíduos poderiam aceder ao padrão familiar católico vigente.

No fundo, fomos levadas a aceitar que a mundivivência minhota se encontrava num dilema fundamental, entre o modelo familiar que a igreja secularmente lhes impunha como o mais perfeito e aceitável, e os constrangimentos reais que impediam que muitos indivíduos alcançassem o ideal de vida familiar que se incutia e desejava.

Quando não era possível aceder aos modelos, contornava-se a norma, subvertia-se a ordem, mas no inconsciente colectivo todos buscariam incessantemente atingir a perfeição familiar. A família possível, o desvio, o concubinato, só tinha lugar quando a família legítima era inviabilizada, seja através da pouca disponibilidade de parceiros, seja através da dificuldade de se estabelecer um novo agregado numa terra já largamente saturada de população, seja através de sistemas de acesso e propriedade da terra pouco igualitários, seja devido ao sistema de herança que privilegiava uns herdeiros em detrimento de outros. Nestas condições os mecanismos alternativos começavam a colocar-se em moto.

No final do século XIX a reunião de determinadas situações possibilitou, a nosso ver, que um maio número de indivíduos acedesse ao modelo ideal, pois encontrariam não só parceiros para fundar um família, como os meios de subsistência necessários à manutenção da mesma.

Por outro lado devemos reflectir sobre a profundidade das mudanças ocasionadas pela euforia económica que caracterizou a economia concelhia naquele período. Sabemos que a concorrência internacional fez com que aquele sucesso fosse efémero. Uma produção baseada quase cem por cento no trabalho manual, nos teares caseiros, não podia enfrentar outros mercados produtores que já estavam largamente mecanizados.

A conjuntura económica favorável que se manteve num curto espaço de tempo, não teve sequência nos primeiros anos do novo século. E seria extremamente importante continuar o nosso estudo e verificar, numa investigação subsequente, como a comunidade enfrentou não só as primeiras décadas do século XX, mas toda a turbulência dos períodos de transição para a república, das guerras mundiais entremeados pela crise dos anos trinta.

Mais ainda, em termos portugueses, como foram ultrapassadas as situações inerentes a uma economia atrasada e periférica e como a família encontrou formas de enfrentar o êxodo populacional que continuou a marcar a sua história, embora os destinos se tivessem alterado com o correr dos anos.

Estas são questões que se colocam e que ainda requerem uma análise ao nível microanalítico, que tenham a reconstituição de famílias/paróquias como plataforma de lançamento, para análises mais contextualizadas, fundamentadas através do cruzamento de outras fontes, não só de carácter eclesiástico, e que dêem algumas respostas sobre como os indivíduos e as famílias conseguiram desenvolver estratégias tão variadas e complexas para garantir a sua perpetuação.