Grupo de História das Populações

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O nascimento fora do matrimónio

Ao reapreciar a dissertação de doutoramento de Paulo Teodoro de Matos sobre o nascimento fora do matrimónio na freguesia da Ribeira Seca da Ilha de S. Jorge (Açores): 1800-1910, maravilhei-me, mais uma vez, com a maturidade científica de um investigador tão jovem.

Licenciado em História, optou por obter uma especialização em Demografia Histórica, uma também jovem área científica, com amplos espaços abertos à sedimentação e à inovação. Foi num desses espaços abertos que Paulo Matos se movimentou, articulando todo o seu trabalho de uma forma lógica, desde a curiosidade que motivou a escolha do tema, à colecta dos recursos para o seu tratamento, à abertura de novas vias de compreensão para o mesmo.

De facto, o achamento na grande freguesia da Ribeira Seca de dois róis de confessados oitocentistas “em péssimo estado de conservação”, em que sobressaía o fenómeno da ilegitimidade, foi ponto de partida para um sólida construção.

Aprofundar o fenómeno do nascimento fora do casamento exigia antes de mais o conhecimento da população em causa. A reconstituição da paróquia através do cruzamento dos registos sacramentais de baptizados, casamentos e óbitos, em período pertinente para as análises pretendidas, foi uma morosa e importante primeira fase do seu trabalho.

Identificados os protagonistas pelos actos biológicos fundamentais, em cadeia genealógica, abria-se o caminho ao cruzamento com outras fontes nominativas que permitissem o escalonamento social dos chefes de fogo. Além das referências a profissões dos registos paroquiais, dos próprios róis de confessados e de outras fontes, nomeadamente dispensas matrimoniais, a contribuição predial de 1881 conduziu-o à definição de uma tipologia social adequada à realidade em análise.

De posse desta original riqueza informativa, Paulo Matos procurou a sua contextualização, com abordagens marcadamente pluridisciplinares, organizando o seu trabalho em seis capítulos.

Num Primeiro Capítulo, depois de rigorosa inventariação e crítica das fontes e metodologias utilizadas, dá-nos conta desses alicerces fundamentais que suportam a originalidade da sua dissertação: a base de dados demográfica e o escalonamento social dos chefes de família.

Num Segundo Capítulo faz-nos penetrar no espaço da Ribeira Seca oitocentista, acompanhando a dinâmica da construção da sua geografia humana, condicionada por um espaço de orografia complexa e recursos naturais diversificados e por uma população em que sobressaía a suavidade da morte.

No Terceiro Capítulo, para o estudo de a população e os condicionalismos demográficos, utiliza, de uma forma encadeada, os recursos da base de dados demográfica decorrente da reconstituição da paróquia, a par de informações datadas sobre volume da população existentes em arquivos públicos, para nos fazer acompanhar os ritmos de evolução da população em causa. Desenvolve, depois, uma análise em moldes clássicos dos comportamentos demográficos da natalidade, salientando a ilegitimidade, fecundidade, nupcialidade, celibato definitivo, mortalidade e emigração, conduzindo-nos a uma compreensão endógena do ritmo da evolução da população.

O Quarto Capítulo incide sobre a análise do tema fulcral da sua dissertação, as ilegitimidades, num aprofundamento que não se eximiu a esforços para acompanhar histórias de mães com filhos fora do casamento, mesmo para além dos limites geográficos da paróquia. A base de dados demográfica em cruzamento com a informação dos róis de confessados, apoiando-se no escalonamento social dos chefes de família, permitiu-lhe a perseguição dos comportamentos diferenciais, criando um original e riquíssimo espaço de pesquisa.

No Quinto Capítulo, sobre a configuração dos agregados domésticos, faz-nos penetrar na problemática complexa da sua tipificação a partir de fontes diferenciadas. Dadas as dificuldades sentidas na aplicação da clássica tipologia de Cambridge, apresenta ele próprio uma proposta tipológica a contemplar os agregados domésticos com situações de ilegitimidade.

No Sexto Capítulo, penetra no debate teórico de temas como sub-sociedade de ilegítimos ou incidência da ilegitimidade em populações com repartição não igualitária da herança, abrindo-nos uma nova e riquíssima visão da complexidade do fenómeno: não só a elevada idade ao casamento masculino e feminino, a emigração diferencial que condena muitas mulheres ao celibato, a suave mortalidade infantil que incrementa a população, a marcada longevidade que protela as heranças, mas também as desigualdades sociais, as onerosas dispensas matrimoniais, a recusa ao abandono de crianças, a cultura de convívio com o fenómeno (que o autor recolhe dos documentos mas também junto dos velhos da comunidade).

O agradável encadeamento do discurso de Paulo Matos e o tema sensível escolhido, são ainda uma garantia de que este rigoroso trabalho científico terá repercussão muito para além dos meios académicos.