Grupo de História das Populações

Investigadores Projecto Espaços Urbanos

 

CANTEIRO, Elódia - Mortalidade Infantil e práticas associadas ao primeiro ano de vida. Um estudo no território de Vizela

Sendo embora o mais importante, o ponteiro das horas de um relógio parece imóvel.

A lentidão dos fenómenos demográficos que os sobrecarrega de consequências, esconde-os à atenção dos contemporâneos que os sofrem. A maior parte dos acontecimentos históricos profundos encontram a sua explicação em considerações de população.

 SAUVY, A. (1944)

 Os fenómenos demográficos encerram em si uma grande complexidade e importância, estando-lhes muitas vezes associada a dualidade causa-efeito, a ponto de condicionarem a evolução da própria história. Neste riquíssimo campo de investigação parece-nos haver indicadores, como a Taxa de Mortalidade Infantil[1], que se assumem como primordiais, em termos das ilações que nos permitem tirar quanto ao grau de desenvolvimento do país, ou região, sobre a qual incide o estudo. Neste índice demográfico se consubstanciam as políticas sociais adoptadas, nomeadamente, as medidas legislativas de protecção à mulher grávida, a operacionalidade do sistema de saúde em termos de acompanhamento médico antes, durante, e após o nascimento e, claro, os apoios monetários estatais disponíveis.

Pretendemos, com este trabalho, reflectir sobre a problemática da evolução da Taxa de Mortalidade Infantil, no espaço urbano de Vizela, nos múltiplos aspectos que a condicionam. Não se trata da descrição de uma evolução, já de si algo complexa, mas antes de um desafio de procura sistemática da compreensão de um indicador fundamental. Este reflecte, ainda que indirectamente, o estado médico-sanitário, de escolaridade e de desenvolvimento sócio-económico da população do território em análise. E, como um desafio que é, impõe-se-nos encontrar pistas de investigação e possíveis explicações para as questões que se nos colocam. Em última instância, a possibilidade de abertura de campos de trabalho mais amplos, de alargamento de horizontes de pesquisa e de investigação.

Mergulhando no mundo da investigação, vamos adquirindo a consciência de que não mais nos libertaremos da inquietação de questionar, da persistência da busca de novos conhecimentos. Não podendo estar alheios a esta panóplia de manifestações diárias de mudança, cada investigador, será, de certa forma, uma pequena parte dos agentes dessa mudança social que se intensifica e, tal como TOFFLER, Alvin (1984: 14) Nós, os que compartilhamos o planeta neste momento explosivo, sentimos, todo o impacte da Terceira Vaga no decorrer da nossa própria vida.

Desencadeámos esta reflexão, o mais aprofundada possível, sobre a evolução da Taxa de Mortalidade Infantil em interacção com o termalismo e a industrialização, vislumbrando as diferenças de evolução nas duas paróquias em estudo, S. João e S. Miguel de Vizela (que constituem a cidade de Vizela) e tentar perceber a influência dos principais factores condicionantes desta variável. Foi, também, nosso objectivo inventariar comportamentos associados ao primeiro ano de vida da criança, numa tentativa de contrapor a herança (imaginário, crenças e tradições) às mutações provocadas pelas recentes e significativas alterações culturais.

A opção pela recente cidade de Vizela[2], como território alvo para este estudo, teve subjacente o facto de aqui residirmos e trabalharmos desde a abertura da Escola Secundária (1985-1986) e termos conhecimento dos acontecimentos recentes, condicionantes da sua história actual e consequentemente, responsáveis por significativas alterações espaciais. Acresce ainda o facto de, na nossa prática profissional, tentarmos promover a interacção entre a Escola Secundária e o meio envolvente, o que nos incentivou a encetar esta pesquisa por forma a conhecer, com alguma profundidade, os multifacetados aspectos que o caracterizam e interagem entre si e poder prestar o nosso modesto contributo para o enriquecimento cultural local.

Se, por um lado, se tornaria mais fácil proceder a este tipo de investigação para um âmbito geográfico diferente, com acesso facilitado às fontes, nomeadamente estatísticas, também é verdade que centrar este estudo na cidade de Vizela, constitui um desafio muito superior, não só ao nível da pesquisa, mas também, no que concerne ao elencar de hipóteses explicativas. Move-nos também o desejo de facultar às gerações mais jovens algum material que lhes possibilite o melhor conhecimento das suas origens, nomeadamente, ao nível de um indicador que consideramos de primordial importância. Na opinião de LA CALLE, José, o seu estudo [da mortalidade infantil] pode ser interpretado como um índice de desenvolvimento, devido à sensibilidade da criança às condições de vida da comunidade (LA CALLE, José, 1998: 11). Julgamos, desta forma, poder perspectivar o futuro, contribuindo assim para o enriquecimento a nível da investigação, escassa neste domínio e neste espaço geográfico.

Para equacionar as questões relacionadas com o fenómeno da Taxa de Mortalidade Infantil, centrámos a nossa análise num período bastante extenso, percorrendo quase todo o século XX (1911-1999), atendendo a que, um fenómeno como este, terá muito mais expressão se a análise se alargar em termos temporais. Por outro lado, temos a percepção que ao longo do século XX, sobretudo na segunda metade, se produziram significativas alterações sócio-económicas e espaciais que, consequentemente, se reflectiram na evolução do indicador em análise, à escala nacional e, também, à escala local. Como início da nossa observação definimos o ano de 1911, por coincidir com o início dos Registo Civis no nosso país[3], permitindo-nos desta forma cruzar dados provenientes de diferentes fontes e validar a primeira parte da nossa investigação que tem como fonte preferencial os Registos Paroquiais de baptizado, casamento e sobretudo de óbito (levantamento anónimo dos dados). Na base desta opção pesou, sobretudo, o facto de serem as únicas fontes disponíveis que nos permitem fazer este estudo à escala de paróquia, atendendo ao facto das fontes estatísticas não fornecerem valores de nados-vivos e óbitos, para este nível de análise, para períodos anteriores a 1993. Por outro lado, motivou-nos a curiosidade que as mesmas despertaram em nós ao longo da frequência da parte curricular do Mestrado em História das Populações. Apesar das limitações destas fontes, sobre as quais nos debruçaremos no item 1.1 da I parte, as mesmas permitem a abordagem a este tipo de indicador para o período em estudo e para a escala de análise seleccionada.

No quadro da pesquisa sobre a persistência de mitos e crenças associados ao nascimento e ao primeiro ano de vida, pretendemos averiguar, no espaço urbano de Vizela, a relação entre a população e o saber pragmático transmitido de geração em geração. Neste sentido, aplicámos inquéritos por entrevista standardizada, domiciliária, às mães de crianças com um ano de vida, tomando como referência os nados-vivos ocorridos nas duas freguesias no período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2001.

Partimos então de duas hipóteses de trabalho. A primeira hipótese relaciona-se com a existência de diferentes atitudes e diferentes comportamentos que condicionam a evolução da Taxa de Mortalidade Infantil que estarão em estreita ligação com a realidade sócio-económica do território alvo deste estudo, nomeadamente a importância do termalismo e posteriormente da industrialização. A segunda hipótese prende-se com a convicção de que as tradições e práticas em momentos marcantes da vida estão em desuso, no entanto, persistem enraizados determinados procedimentos em estreita associação com o nível de instrução e a idade, sobretudo da mãe, bem como com a respectiva ocupação profissional e freguesia de residência.

O presente trabalho é constituído por duas partes distintas. Uma primeira em que, depois de uma caracterização e contextualização do espaço geográfico em estudo, pretendemos demonstrar, de forma clara e objectiva, como evoluiu a Taxa de Mortalidade Infantil em Vizela e quais os possíveis factores condicionantes. Na segunda parte apresentamos os comportamentos associados ao primeiro ano de vida da criança, na dualidade herança/mutação, tendo por base a realização de inquéritos por entrevista domiciliária, às mães de crianças de um ano, das duas freguesias.

A sua concepção em duas partes distintas, embora interligadas, permite que possam ser lidas independentemente. Pretende-se que seja uma interpelação, pelas interrogações e hipóteses explicativas que coloca ao longo da leitura, como que pretendendo envolver nesta pesquisa quem lê, convidando a reflectir sobre questões vitais - a vida e a morte durante o primeiro ano de vida. Estamos conscientes que se trata de um trabalho que pode impulsionar novas veredas de reflexão.

O fio condutor, que pautou esta investigação, teve subjacente o espaço geográfico, em permanente interacção com a população, e a tentativa de compreender as «teias» em torno das quais se edifica a vida e o desenvolvimento da criança ao longo do seu primeiro ano.

E se, ao nível da evolução da Taxa de Mortalidade Infantil, se verifica que este indicador acompanha, grosso modo (com pequenas nuances entre as duas freguesias), a evolução ocorrida no país, relativamente à herança quanto aos mitos e crenças, associadas ao nascimento e primeiro ano de vida, aferimos que os mesmos estão ainda bastante arreigados nas duas freguesias estudadas, traduzindo-se em comportamentos carregados de simbolismo. Embora os referidos comportamentos, na sua maioria, não constituam risco, em termos do desenvolvimento harmonioso da criança, acabam por condicionar as práticas, ritualizando momentos específicos deste importante período de adaptação da criança à sociedade.

Esta publicação resulta de um trabalho de investigação apresentado na dissertação de mestrado, com o mesmo título, orientado pela Professora Doutora Paula Cristina Remoaldo, da Universidade do Minho, que prestou um apoio e acompanhamento incondicionais, a quem manifestamos o nosso profundo reconhecimento. Agradecemos também à Professora Doutora Maria Norberta Amorim pela possibilidade concedida em levar a cabo esta investigação e permitir o contacto com prestigiados investigadores, portugueses e estrangeiros, de diversas áreas de investigação, fazendo da transversalidade do saber uma constante. O nosso bem-haja às instituições que nos acolheram e facultaram as fontes preciosas para este trabalho, desde a Companhia de Banhos de Vizela, Conservatórias do Registo Civil de Vizela e Guimarães, Arquivo Paroquial de S. João e de S. Miguel, Fundação Martins Sarmento, Câmara Municipal de Vizela. O nosso agradecimento especial à Professora Doutora Rosa Silva Vasconcelos, da Universidade do Porto, pela disponibilidade manifestada em nos fornecer algumas pistas de análise e avaliar o trabalho desenvolvido.

Finalmente, uma referência particular a todas as mães que connosco partilharam momentos preciosos do seu tempo, por vezes quando a criança já se encontrava a repousar e elas, cansadas de mais um dia de trabalho, ainda arranjavam força para cooperar. Depois das reticências habituais neste tipo de abordagem, abriam os seus “cofres dos segredos” incentivando-nos a continuar a pesquisa sugerindo-nos perspectivas de outras áreas de análise complementares a esta investigação. Pela forma calorosa com que sempre nos acolheram e pela colaboração de todas as pessoas amigas que nos facilitaram os contactos com as mães a entrevistar, este trabalho de campo tornou-se uma experiência muito gratificante a todos os níveis.


 

[1] A Taxa de Mortalidade Infantil é o número de óbitos de crianças com menos de um ano, ocorrido durante um certo período de tempo, normalmente o ano, referido ao número de nados-vivos do mesmo período. Habitualmente é o número de óbitos de crianças com menos de um ano por mil nados-vivos.

T.M.I.= O< 1 (0,t)/ N (0,t) x1000.

O<1(0,t) - Óbitos de crianças com menos de 1 ano entre os momentos 0 e t.

N (0,t) - Nados-vivos entre os momentos 0 e t.

[2] A 1 de Setembro de 1998, o Decreto-Lei n.º 63/98 criou o município de Vizela e a elevação da anterior vila de Caldas de Vizela à categoria de cidade de Vizela.

[3] Os Registos Civis foram instituídos no nosso país pelo Código Civil de 18 de Fevereiro de 1911, criando-se, para tal, as Conservatórias do Registo Civil.