Grupo de História das Populações

Investigadores Projecto Espaços Urbanos

 

Neves, António Amaro - Filhos das Ervas - a ilegitimidade no norte de Guimarães (séculos XVI - XVIII)

-Amigo, as mulheres são falsas, enredadeiras, mentirosas, poços de vícios e de maldade, - mas Deus Nosso Senhor não nos falte com uma!

 Júlio Dantas (1917:194)

 A sociedade do Antigo Regime do Sul católico da Europa tem sido retratada como estando envolvida por uma espessa cortina de interditos que abrangia todos os aspectos da sexualidade humana, perpetuamente associada às representações do pecado: todo o desejo era qualificado de tentação passível de castigo, por se enquadrar entre as manifestações perniciosas do poder demoníaco, surgindo vinculado à imagem do fogo que incendeia os corpos e condena as almas aos tormentos do fogo eterno do Inferno. É neste contexto normativo de inspiração religiosa que, ao mesmo tempo que se faz apelo à vida contemplativa, ascética e casta, se condenam todas as práticas sexuais. Este apelo existencial aparece reproduzido na bibliografia torrencial, vinda a lume ao longo do Antigo Regime, que discorre sobre a condenação da quebra dos interditos sexuais, constituindo o núcleo central dos catecismos, manuais de confessores, sermões e outras obras de teologia e moralidade.

A eficácia deste discurso restritivo foi comprovada pela investigação histórica europeia: os historiadores demógrafos verificaram a prevalência de um modelo demográfico marcado pelo controlo dos comportamentos e pela quase inexistência de relações extraconjugais, numa sociedade onde a contracepção era ignorada ou se socorria de métodos demasiado toscos para terem eficácia. A base desta ideia, transmitida pela inquestionável objectividade da demografia histórica, assenta solidamente numa constatação indesmentível: praticamente não havia filhos ilegítimos, uma vez que nos estudos demográficos de Antigo Regime, em especial entre as populações de raiz rural, o seu volume atinge sistematicamente valores irrelevantes. Se não nasciam bastardos, nem se praticava uma contracepção fiável, a conclusão resultava evidente: não existiam relações fora do casamento.

Todavia, os números respeitantes à ilegitimidade no Minho permitiram-nos definir um quadro que contrasta claramente com o padrão de comportamento europeu do Antigo Regime. Aqui, o volume de baptismos de ilegítimos é muito elevado, quando comparado com o que resulta dos estudos demográficos europeus: enquanto que a regra se situa abaixo de 10 ilegítimos em cada mil crianças nascidas, o valor médio encontrado para o Norte de Guimarães ao longo do período que medeia entre as últimas décadas do século xvi e o final do século xviii ultrapassa o patamar de 150 ilegítimos em cada mil crianças baptizadas.

Assim, é inevitável que os números respeitantes à ilegitimidade no Minho nos levem a questionar algumas das ideias centrais do discurso sobre a ilegitimidade na antiga sociedade europeia. Em primeiro lugar, é colocada em causa a própria concepção da ausência de relações fora do casamento, uma vez que os resultados da investigação demográfica que se debruça sobre o Minho antigo nos conduzem à evidência de que existiam relações extraconjugais frequentes que, ao serem férteis, tinham uma significativa repercussão na estrutura do quadro demográfico da região.

Esta verificação adquire uma maior acuidade se verificarmos que os dados em que nos baseamos se referem apenas a relações férteis, nada nos dizendo sobre aquelas que não conduziam a gravidezes levadas a termo. E não se pode ignorar que, embora rudimentar, havia já entre os nossos antepassados o conhecimento de técnicas contraceptivas e abortivas, cuja frequência de utilização e eficácia não nos é possível aferir, por falta de fontes; porém, não restam dúvidas de que o facto de constituírem uma das grandes preocupações penitenciais de confessores e moralistas, indicia que teriam alguma presença no quotidiano dos nossos antepassados. Se, por último, tivermos em conta o facto de que, por cada relação sexual fértil, num contexto de ausência absoluta de contracepção, ocorrem largas dezenas de actos idênticos que não consumavam qualquer gravidez, somos levados a contrapor ao princípio da inexistência de relações fora do casamento a ideia de que estas práticas seriam bastante comuns.

Uma outra concepção que os nossos dados podem colocar em causa centra-se no princípio da variação da frequência da ilegitimidade consoante o rigor do controlo social, o qual seria maior no meio rural do que no espaço urbano. A noção de que as mulheres solteiras se dirigiam para os centros urbanos, onde o controlo social seria menos rigoroso, para aí darem à luz e baptizarem os frutos dos seus amores clandestinos não parece ter completa correspondência com a realidade minhota (pelo menos, estava longe de ser regra geral), e o inverso era frequentemente verdade, uma vez que são comuns os casos registados de mulheres da vila de Guimarães que baptizam os seus filhos ilegítimos nas aldeias do termo. Por outro lado, atendendo à especificidade do povoamento deste território, era o centro urbano o local onde o controlo social se fazia sentir com maior rigidez. Mais uma vez, os dados demográficos negam a ideia da maior incidência da bastardia nas cidades: no Minho, a frequência dos nascimentos de filhos naturais não era, por regra, menor no mundo rural do que no centro urbano. Os valores eram geralmente aproximados e, não raras vezes, mais elevados no interior rural.

No Minho, a tendência de crescimento da ilegitimidade do século xvii para o século xviii contrasta igualmente com o padrão europeu: à curva tradicional que representa um incremento da ilegitimidade à medida que se caminha no tempo, por regra explicado pela diminuição do controlo religioso, contrapõe-se um quadro em que a proporção de ilegítimos é menor no século xviii do que no século anterior. Este fenómeno indicia uma alteração de comportamento que tem a ver com um processo de progressivo estreitamento do rigor do controlo social e religioso, no contexto do qual a ilegitimidade passou a ser encarada como mais culposa. Esta tendência é visível no aumento do volume das concepções pré-conjugais, sinal de que a gravidez passou a conduzir com mais frequência ao casamento. Por outro lado, o crescimento prodigioso do número de crianças abandonadas, que tem lugar a partir do final do século xviii, pode ajudar a explicar a redução da frequência dos nascimentos ilegítimos registados.

Uma outra ideia, divulgada pelos estudos da demografia e dos comportamentos antigos, identifica uma maior intolerância sexual nas regiões onde predomina o catolicismo. O núcleo das nossas interrogações em relação ao problema da ilegitimidade no Minho resulta da explicação geralmente aceite de que o controlo social, nomeadamente o exercido pela rede de influência do catolicismo funcionaria como freio eficaz para as relações fora do casamento. É inegável a existência de um esforço nesse sentido, responsável pela produção de um discurso fundador de uma sociedade casta, continente e controlada.

Todavia, a esta imagem sobrepõe-se uma outra, dificilmente negligenciável: o mensageiro dessa doutrina ascética e austera, o clero, apresenta-se, para além das suas pregações, como sexualmente activo não obstante os interditos que sobre ele impendem e dos votos de castidade a que estava obrigado, aplicando-se-lhe a velha sentença: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. Ainda hoje, quando se fala nos números que a bastardia atingia no Minho antigo, é comum escutarem-se comentários espirituosos acerca da contribuição dos clérigos para a reprodução da espécie. Esta ideia, profundamente enraizada e obviamente exagerada, tem fundamento na realidade: transparece das fontes que utilizámos (registos de baptismos em que os pais das crianças ilegítimas são identificados ou processos de devassa) a existência de um clero que não renuncia à actividade sexual, a coberto de uma clara desvalorização da importância das violações do voto de castidade, reduzindo-as na prática à condição de meros pecadilhos.

Por outro lado, a pertinência dos efeitos do controlo social exercido pela Igreja como condicionante para a ocorrência de relações fora do casamento resulta dificilmente compreensível se atentarmos na disparidade dos números encontrados para o Minho (muito altos) e para o Sul de Portugal (sem significado estatístico). A haver correspondência entre estes valores, o grau de religiosidade das gentes e a rigidez no controlo dos costumes por parte da rede de influência católica, obteríamos um mapa do Portugal religioso em que o controlo seria mais efectivo e eficaz a Sul do que no Minho; ou seja, um mapa invertido em relação à ideia construída pela História, na qual o Minho se afirmava tradicionalmente como o núcleo central do catolicismo português, onde a rede de influência do clero estava melhor estruturada e era de malha mais apertada do que no resto do país.

Os números a que chegámos conduzem-nos uma ideia que parece exprimir o verso e o reverso do comportamento dos homens da sociedade antiga do Minho: apesar de crentes sinceros e fervorosos, os minhotos eram pecadores relapsos que se entregavam à consumação dos impulsos sensuais que os conduziriam aos tormentos do Inferno, a atender no discurso dos pregadores e moralistas católicos, ao qual eles pareciam atribuir pouco significado, talvez em parte influenciados pelo modelo de comportamento dos próprios clérigos. E não faltam exemplos que parecem tender a demonstrar-nos que, na hierarquia dos pecados dos antigos minhotos, os vícios da sensualidade eram dos mais triviais, comezinhos e, aparentemente, releváveis. Porque as paixões do corpo pareciam ser mais fortes do que as promessas do paraíso para as almas contemplativas e virtuosas. 

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 As teorias que fundamentam a ausência de ilegitimidade no Antigo Regime tomam por base as ideias de que então os jovens seriam mais continentes, provavelmente por causa dos trabalhos agrícolas que, por esgotantes, funcionariam como redutores das paixão, ou porque se manifestavam mecanismos freudianos de sublimação do desejo através de uma religiosidade fervorosa, não podem ser aplicadas por antítese ao meio que nós estudámos, onde o que há a explicar não é a ausência de ilegitimidade, mas sim o nível elevado que se verifica. Conforme já se mostrou atrás, a explicação para este fenómeno não pode ser encontrada seguindo a pista do controlo dos padrões comportamentais e do universo mental daquelas gentes por parte da Igreja Católica: aqueles homens eram sem dúvida fervorosos crentes católicos, ao mesmo tempo que se revelavam sexualmente tolerantes; por outro lado, nada aponta no sentido de que no Minho os trabalhos agrícolas fossem menos exigentes em termos físicos do que no resto da Europa, como facilmente se conclui da grande necessidade de mão-de-obra imposta pela cultura dominante - o milho.

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O sentido da nossa investigação foi orientado na busca da explicação deste fenómeno demográfico e comportamental, tendo começado por se renunciar à propensão “natural” para partirmos das explicações já encontradas pelos historiadores para a ausência generalizada de ilegítimos na antiga Europa, virando-as do avesso: ou seja, se se justificava a escassez de ilegítimos com o argumento da eficácia do controlo social e religioso, seria ingénuo inferir-se que aqui tal controlo não existia; perante a imagem de uma Europa casta e sexualmente quase ascética, que sistematicamente resulta dos estudos demográficos, seria absurda a suposição de um Minho povoado por gente devassa e licenciosa, etc. Temos consciência de estar em presença de um fenómeno complexo, com contornos sociais, económicos, ambientais, culturais e comportamentais, mas que tem uma fundamento demográfico simples, uma vez que todas as observações conduzem a uma ideia nuclear: a estrutura populacional do Minho antigo apresentava um desequilíbrio fundamental resultante da falta de elementos masculinos, o que constrangia parte significativa da sua população a um comportamento de desvio em relação ao preceito que interditava as relações fora do casamento.

O dinamismo demográfico do Minho do Antigo Regime encontrou na emigração um mecanismo regulador que lhe ia garantindo um mínimo desequilíbrio entre a população e os meios de subsistência disponíveis. Tanto ou mais do que a morte, associada ao mecanismo complementar do casamento tardio, seria o destino da emigração adoptado por muitos minhotos que moderava o crescimento populacional e suavizava as crises de mortalidade. Deste modo, através do movimento de saída para a emigração dos seus excedentes populacionais, o Minho geria a tendência de incremento populacional propiciada pelas suas condições favoráveis para a existência humana, que o homem melhorou com a introdução precoce da cultura de produtos do Novo Mundo, como o milho e o feijão, que contribuíram significativamente para o enriquecimento do regime alimentar, alargando as expectativas de sobrevivência. Assim se cumpriam as palavras do Padre António Vieira quando, referindo-se ao destino dos portugueses, escreveu:

Para nascer, pouca terra, para morrer toda a terra. Para nascer Portugal, para morrer o mundo.

Neste processo, eram os homens que pagavam o mais largo tributo à emigração, como o revela a análise da relação de masculinidade da população ao óbito: apesar de nascerem sempre mais homens do que mulheres, morriam, dentro da zona estudada, muito mais mulheres do que homens, fenómeno que resulta de um quadro migratório que atingia quase exclusivamente os elementos masculinos da população. Mas que consequências terá tido o desequilíbrio demográfico assim gerado sobre a existência dos homens e das mulheres que ficavam? Não é difícil de calcular a dificuldade que as mulheres teriam em encontrarem um parceiro matrimonial disponível, pelo que muitas delas se veriam na contingência de permanecerem solteiras. Numa sociedade que desvalorizava a condição feminina, muitas destas mulheres ficavam votadas a um destino sombrio a partir do momento em que, com os pais mortos e os irmãos emigrados, se viam sozinhas no mundo e muitas vezes destituídas de meios para sobreviverem, tornando-se em presas fáceis das promessas que os sedutores raramente cumpriam, ou usando elas próprias de todas as suas prendas e manhas para prenderem os homens, os quais, se não existiam na proporção de um para cada sete mulheres, como fantasiava o anexim popular, eram insuficientes para garantirem um mínimo de equilíbrio entre ambos os sexos.

Num outro plano de observação, resulta de muito difícil interpretação a elevada relação de masculinidade ao nascimento, especialmente no que concerne ao nascimentos de ilegítimos, que sistematicamente resulta da análise estatística dos registos dos baptismos celebrados na zona norte do concelho de Guimarães. As variáveis de ordem biológica não parecem susceptíveis de explicarem o fenómeno, embora uma possível maior incidência dos laços de consanguinidade entre os progenitores de crianças ilegítimas possa eventualmente dar alguma contribuição nesse sentido. É igualmente de ponderar, ao menos do ponto de vista teórico, a possibilidade da ocorrência de situações de infanticídio, que atingiriam preferencialmente os recém-nascidos do sexo feminino, numa sociedade onde o horizonte de vida de uma mulher era bastante mais sombrio do que o de um homem, em particular nas situações que resultavam de nascimentos clandestinos.

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Os resultados dos estudos de demografia histórica podem afirmar-se como os suportes estruturantes de toda a investigação de história social, económica ou das mentalidades. É neste contexto que pode revelar-se particularmente significativa a contribuição da micro-demografia nominal, que, ao contrário do que sustentam alguns historiadores (nomeadamente demógrafos) não constitui um ramo de estudos ultrapassado pelo tempo, quanto mais não seja pela simples razão de que, para largos espaços territoriais, ainda está à espera de ser feita. A demografia dos grandes números, que se movimenta através de processos agregativos, produzindo grandes quadros demográficos, afasta-se dos indivíduos, afastando-se da essência dos verdadeiros agentes da História. O distanciamento de muitos investigadores em relação à demografia nominal, de reconstituição de famílias ou de paróquias, que trabalha com a reconstrução das histórias de vida dos indivíduos, prende-se acima de tudo com a morosidade dos procedimentos metodológicos até que se comecem a vislumbrar os primeiros resultados.

As conclusões dos estudos de reconstruções de famílias que deram corpo à Demografia Histórica produziram efeitos cuja ressonância se repercute muito para lá da mera ciência estatística a que por vezes tem sido reduzida. Funcionou, além do mais, como reveladora das mentalidades e dos comportamentos dos nossos antepassados, até então apenas adivinhados através das narrativas literárias e memorialistas, construídas sobre bases eminentemente subjectivas, que apenas permitiam o adensamento da penumbra em que permanecia mergulhado o conhecimento de áreas fundamentais do universo existencial dos homens de seiscentos e de setecentos. A história da sexualidade, por exemplo, tal como hoje existe, tem sido largamente beneficiária das contribuições dos estudos da demografia histórica.

Este trabalho parece-nos ter conduzido à demonstração de que, em muitos aspectos, há ainda imenso para saber acerca do comportamento dos nossos avós longínquos, os quais serão tanto melhor conhecidos quanto maior for a aproximação ao conhecimento das histórias de vida dos indivíduos que deram forma ao passado humano. É neste campo que a demografia histórica, numa perspectiva de micro-análise, ao trabalhar com indivíduos identificados cujos percursos de vida são reconstruídos e integrados nas famílias e comunidades de que fizeram parte, se pode afirmar como uma estrutura de suporte das investigações em história social, económica ou das mentalidades.